O COMUM DOS MORTAIS
Quando
as mãozinhas batentes-de-porta eram inauguradas numa nova casa, isso constituía
um passo dado a encurtar a distância entre as classes. Havia lojistas que, mercê
dum sacrifício duma vida inteira, davam aos filhos uma educação capaz de os
fazer dar um salto que a natureza não ousaria. Outras vezes retrocediam, como
quando uma viuvez impedia o processo de melhoramento de se efectuar. Nesse
caso, a mãozinha batente-de-porta perdia a pintura, em geral verde ou zarcão,
enferrujava-se e tornava-se desajustada ao prego do batente. A ruína começava
por aí. Depois os caixilhos das janelas perdiam o betume, os azulejos iam
caindo, a casa mantinha-se de pé com esforço, vendo-se de fora as cortinas
sujas de caruncho e velhos tectos rachados. Os rapazes emigravam ou desciam na
classe social aceitando empregos subalternos, nos Correios ou nos Casinos. Tornavam-se
pobres com princípios e acabavam por fazer um desfalque resgatado às vezes por
um suicídio. A miséria regressiva dava origem a tipos desesperados que se
casavam por amor e, se eram enganados, disparavam um tiro na mulher ou se
atiravam do paredão. Na aparência eram sensatos, amáveis, com um certo pendor
chocarreiro e amigos dos filhos. Apesar de terem chave, usavam a mãozinha
batente-de-porta com uma sensibilidade própria : como se recordassem o tempo
escolar e a hora de chegar a casa para entrar como um furacão pelo corredor
dentro, ouvindo os ralhos da mãe que lhes soava docemente no coração. Tempos
airosos da bicicleta e dos patins com rodas de fibra, eles não esqueceriam mais
o jantar de dois pratos, os gatos malhados no pátio contíguo a outro pátio onde
crescia limoeiro.
Agustina Bessa-Luís, O Comum dos Mortais, Lisboa : Guimarães Editores, 1998, pp. 78-79.