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Uma aventura no Porto
23 juillet 2010

Bardos, Galdérios e Galhofa...


A Arte de Morrer Longe

A_Arte_de_morrer_longe


«Por essa hora, Arnaldo dava-se a uma acção retaliadora que se pode considerar temerária, tomando em conta o seu físico esguio e o feitio reservado.
Começou à entrada do elevador, quando o largo e folgazão Quintão Malpique meteu a patorra peluda entre as portas metálicas e fez disparar o sensor, evitando que fechassem. Foi Arnaldo o único de entre os dez utilizadores que não riu quando mais o fulano veio com a sua grande frase «Ai, ai, quanto mais fulgêncio me reputo tanto mais sulfúreo me alcandoro», suscitando comentários do género «Que castiço!», «Grande Malpique!». E olhou-o furibundo, quando ele lhe deu uma palmada no ombro e, depois, lhe apertou o braço com uma familiaridade que não estava lembrado de consentir.
Mas a questão não tinha ficado por aí. Foi um daqueles dias de atabalhoamento dos deuses, lá em cima, quando tropeçam ou se distraem e começam a cruzar linhas e a encaroçar as tintas. A distância de segurança a que Arnaldo mantinha Quintão Malpique, devido a uma antipatia fininha proveniente da incompatibilidade de feitios, costumava ser preservada, não apenas pelos vidros dos gabinetes, mas pelos seus passos cautelosos que evitavam aproximar-se quando o outro se repimpava na cafetaria, a dizer graçolas.
Descortina o leitor um tipo de português largo e inflado, ovante e intrusivo, propenso à calvície, com sobrancelhas de escovilhão, riso beiçudo, pelame encaracolado em todo o corpo, amador da piadola e da pirraça, grosseiro para os mais fracos, airoso para os superiores, em absoluto impenetrável a noções básicas de decência e decoro? Uma figura digna das Metamorfoses, em que se hibridam o entranhado lanzudo e o atávico malandrim? Não descortina? Então é porque este Quintão Malpique era uma raridade e convém, na passagem, examiná-lo mais de perto como espécime singular.
Se lhe perguntassem por que é que ele se tinha queixado à polícia, por carta anónima, duma velha que dependurava os cobertores nas traseiras do prédio, sem que isso afectasse ninguém, e muito menos os empregados duma empresa que não moravam ali, ele responderia, rindo: «É só p’ra chatear». Do mesmo modo, quando telefonava para a Câmara, disfarçando a voz, a denunciar um vizinho que fazia obras clandestinas numa casa de banho, era «só p´ra chatear». Também era «só p´ra chatear» o gesto de deixar o elevador encravado no nono andar para que um casal de idosos, com o seu velho cão, tivesse de se arrastar pelas escadas.»


M_rio_de_Carvalho

         

 O novo romance de Mário de Carvalho, ou melhor o/a cronovelema, género cultivado pelo próprio autor desde Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina, assenta principalmente no escalpelizar do Portugal de hoje, um Portugal demasiado barulhento e ingénuo, travestido pela azáfama da internet e pela glorificação do trivial que incarna maravilhosamente a personagem do Quintão Malpique. Aliás, a personagem do intrometido e gozão Quintão reveste as características, tanto físicas como analítico- psíquicas, do português mediano, cultivador de maledicências e de galhofas em todo o género; nele reside uma assertiva crítica ao consumismo, ao chico-esperto, à falta de civismo que tantos estragos provoca na nossa sociedade. Há também neste livro uma intensa e constante matriz visual. «O nosso olhar é conformado pelo cinema, sonhamos com planos. Já não conseguimos olhar e sonhar de outra maneira» salienta o autor. E, é precisamente o que acontece em A Arte de Morrer Longe, em que o romancista recorre à montagem cinematográfica dos planos, à sua imbricação, à analepse e também à uma intensificação da narrativa com uma estrutura grosso modo fragmentária. O gosto pela incisão de certos episódios conjugado a longas descrições, suspendendo a narrativa em circunlóquios e derivas, ritmam a narrativa que parece reproduzir o movimento do olhar e o consequente processo de captação de imagens surpreendentes de tão banais.

Mário de Carvalho brinca com o leitor, manipula as convenções romanescas, interpela-nos, e sobretudo diverte-nos, para melhor projectar-nos para a trama narrativa. A própria estória dum jovem casal desavindo, Arnaldo e Bárbara, que se auto-suspeita de infidelidade mútua inexistente, não passa dum simples décor, na verdade uma intra-alegoria. Reparem na personagem funambulesca e divertidíssima do Arnaldo que se deixa descambar num ror de peripécias e de agravos dignos dum Pierre Richard ou dum Buster Keaton...

Leitura agradável e sempre refrescante para quem estiver à beira duma piscina...


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