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Uma aventura no Porto
10 octobre 2010

LEITURA DA PERIFERIA IV

small_songRenata Correia Botelho é segundo José Mário Silva uma das novíssimas vozes poéticas «que vale a pena acompanhar». Aquando da publicação do seu primeiro livro editado pela Averno, Um Circo no Nevoeiro, o crítico e poeta José Mário Silva tinha destacado «a extrema depuração» e «a rara entrega emocional» como alicerces dum «lirismo quase kitsch, em fusão com os elementos da natureza». Com o seu livro mais recente intitulado Small Song, Renata Correia Botelho reinveste no mesmo registo, acertando num tom transfigurador, por vezes agreste, cortante. Não por acaso, o primeiro texto do livro, «A Árvore das Raízes», começa com: «a minha infância tem uma árvore/ assombrosa. É uma bela história de amor/ entre as nossas mãos pequeninas/ e aqueles seus braços enormes, bravos e/ loucos como o riso das mães, que faziam abrandar o medo e a tarde.». A árvore, a mãe, a infância, prefiguram desde logo as relações que se estabelecem entre a terra e o céu, entre um presente e um passado e a regenerescência de figuras carnais perdidas em figuras de papel, numa deambulação pelas ruas da infância – verifica-se que a primeira parte do livro se intitula precisamente «A Minha Rua». A figura do tempo impõe-se e, é nela que se propicia o «encontro das sombras» como no poema «O Grande Pássaro»:

no tempo de uma mão acontecem
vidas inteiras: a solidão, o milagre
do amor, corpos que se evadem
do papel e se aninham entre os dedos,
e respiram pela nossa boca
e engendram connosco monstros na noite.

até à página em que o grande pássaro
nos transporta, no silêncio do seu voo,
para a imensa hora azul, aquela linha
secreta do encontro das sombras,
e, num dizer mudo de asas, nos põe no colo
o livro onde, finalmente, viveremos.

Trata-se duma evocação amorosa, obsessiva, consagrando miticamente as figuras que já não são, um canto que celebra os mortos, um epitáfio tal como em Four Quartets de T. S Eliot, em suma uma small song – uma cantilena – pela qual se entra de «olhos abertos» na morte. Assim, Renata Correia Botelho entrega-se ao longo deste livro a um luto que, implicando sobressaltos proustianos da memória, não é mera emotividade. É antes interrogação sobre a vida e sobre a escrita como trabalho de luto e das «coisas que morrem» em cada um de nós.

morreu Ulrich Mühe e o seu rosto antigo
que olhara em tempos na minha direcção
enquanto ouvia a Appassionata de Beethoven,
o amor e As Vidas dos Outros. eu vira o filme
sozinha, num teatro vazio como uma igreja

abandonada de Tonino Guerra, com a cerejeira
a erguer-se entre as cadeiras e o palco
que ninguém vê. ficou tudo ligado: aquele olhar
subterrâneo que regressava agora a águas fundas,
a minha avó a ajeitar, com os seus dedos térreos,
a planta que morreu com ela, a resignação
das gaivotas ao longo da praia
e as palavras de Borges sobre
as coisas que morrem em cada agonia.

ouvirá Mühe, nos seus auscultadores,
a nostalgia do vento a rondar os dragoeiros?
és tu que cantas, Lhasa, com os melros negros,
a luz melancólica desta manhã?
quem dormirá no colo da minha tia,
protegido pelas suas mãos de árvore?

o que morrerá comigo, avô, quando eu morrer?

Paralelamente, faz-se sentir uma percuciente atenção à linguagem em busca de «palavras lavadas/ onde [se] possa encostar a cabeça» que denotam uma extraordinária construção poética de imagens da ausência como poética auto-reflexiva e isso pode conduzir-nos a poemas tão belos como este que se intitula «My Name»:

era um nome entre os dois mundos

lá em cima, onde a terra cheira
a céu , e as asas da noite nos põem
todos os dias um pouco
mais perto da primeira palavra.

no nome dela viviam casas com
janelas abertas sobre o silêncio,
pão, pétalas, o fogo e outras luzes

vivia a prece de um povo em direcção às rosas.

a vida e a morte aconteciam
assim, sábias, dentro do nome dela
como um murmúrio longínquo e familiar,
como um livro que temos medo de abrir.

o nome dela era uma cidade muito alta,
uma palavra alada e livre.

 

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