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Uma aventura no Porto
3 janvier 2010

ROSA MARIA MARTELO ESTREIA-SE COM UM NOVO LIVRO...


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Uma pedra não é o início, no início não havia senão pequenas cordas, líquidos, cores, tecidos não exteriores que nos vestiam mais do que a pele. "A paz que vai além do entendimento", disse ele, e que só por estarmos presos procuramos a chave. Mas não estamos presos, antes um pouco à deriva, como nenhuma pedra sabe ou pode estar. E não procuramos chave alguma, apenas uma certa nitidez, um ponto fixo que não se fixasse, onda fotografada quando mais alta, mas sem ser fotografia. Alguém fotografou essa onda contra uma falésia, em dia de temporal, e eu vi-a anos depois na parede de um café, emoldurada, em frente ao mar. Os empregados gostavam de mostrá-la, imensa, antecipando o espanto dos clientes: "olhe com atenção, repare bem, é o rosto de deus". A paz que vai além do entendimento, disse ele. Podia ter acrescentado que não há chave, podia ter falado desse rosto recortado na onda mais alta, ter distinguido o que se move, ainda quando se fixa, da imobilidade de uma pedra. Uma pedra não tem pele. Veias são pequenas cordas. Podia ter apontado as diferenças.

 

Está acima das nuvens, no alto da montanha mais alta. Vemo-lo de costas, imóvel e contemplativo. Na sua sóbria elegância citadina, dir-se-ia que para ali chegar mais não lhe foi preciso que atravessar tranquilamente uma avenida. Está sozinho diante dos cumes mais altos, vestido como um filho pródigo que regressasse a casa trazendo todos os estigmas de quem vem de um outro mundo. Tudo nele nos diz que não pertence àquele lugar. Terá vindo de uma cidade distante? E como poderia ter chegado ali assim, sem trazer consigo nenhum rasto da poeira dos caminhos? «Tudo é romântico desde que levado para longe», ter-nos-ia dito se verdadeiramente ali estivesse e agora olhasse para trás. Mas ele não pertence a esta paisagem, e por isso o vemos de costas, sem podermos adivinhar de que maneira o seu rosto procura enfrentar o brilho da neve, o reflexo da luz. Tão longe quanto dali está («no fundo da minha alma», diria), hão-de as montanhas parecer-lhe infinitamente maiores do que consegue vê-las, altas acima das nuvens e de qualquer comparação. Tão altas que nem subindo ao ponto mais alto ele poderia, alguma vez, deixar de ser aquele que desconhece a poeira dos caminhos – um homem que há muito desceu a viver no vale e agora regressa, sem saber como voltar na condição em que apenas poderia não ter partido.

 

in A Porta de Duchamp, de Rosa Maria Martelo, Averno, Lisboa, 2009.


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