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Uma aventura no Porto
19 décembre 2009

LEITURAS DA PERIFERIA I

mar_largoDiz-se dele que é um dos melhores livros de poesia do ano 2009. Mar Largo, o mais recente livro de Vítor Nogueira, é uma obra profundamente temática, centrada num mar largo de pedras que ziguezagueiam, alternando o branco com o negro.
Partindo do Rossio, como espaço central da obra, Vítor Nogueira coloca-nos diante do tempo que passa, das pessoas que percorram a praça, calcando cada vez mais as pedras da memória, desgastando e alisando a forma irregular da pedra, apagando, assim, as marcas dos que trabalharam na calçada portuguesa. Deste modo, a calçada torna-se num motivo histórico, num testemunho, num produto histórico que se insere numa poética do recordar, do regenerar sobretudo na primeira parte do livro. Mas o verbo «recordar» significa também fazer voltar à memória, lembrar, rever, repassar e por extensão semântica voltar a si, despertar, acordar e por fim numa acepção mais paroxísmica dar vulto ou figura de ser vivo, encarnar. Poemas como «Raízes» ou «Geologia» participam deste movimento de escavação da memória do qual emerge um passado re-encarnado : a estória dos calceteiros : «Diz-se que saíam em conjunto, agrilhoados,/ da prisão que existia no Castelo,/ e assim permaneciam, decaídos,/ levantando o mar largo do Rossio// Figuras perdidas no tempo, era aquela a extensão total das suas vidas./ o maço e o martelo, como quem ouve/ um pensamento a repetir-se no cérebro». Na verdade, a poesia de Vítor Nogueira toma, desde logo, os contornos duma narrativa poética e até mesmo, de certa maneira, epistolar com o poema «1848». Deste modo, a primeira parte de Mar Largo inscreve-se numa escrita quase diarística com marcas temporais diárias («hoje», «agora», datas) impregnadas numa tonalidade muito confidente na qual se presenceia além da figura temível de Eusébio Furtado a dureza do trabalho de calceteiro. E, tudo isto é substância histórica datada, uma experiência num dado momento em relação com uma determinada época. Daí, uma certa discursividade que indubitavelmente remete para a figura do poeta francês Baudelaire. Assim, o poeta português consegue sacar o eterno do fugidio, da trivialidade da vida de um calceteiro : «Chove. Um homem curvado funciona melhor/ debaixo de água. Estamos aqui a partir pedra,/ para o caso de um dia sermos salvos.// Quantos cubos ainda faltam? Como se faz/ essa conta? As gotas adiantam-se no solo,/ mergulham, indicam o destino.». A primeira parte de Mar Largo, acaba com o poema «Provas» do qual se esfuzia um certo dialogismo com Garrett e Cesário :

O padrão é branco e negro – ponte assente.
De igual modo se dividem os olhares
sobre a calçada. É favor juntar aos autos :

Garrett, O Arco de Sant’Ana, no capítulo XXV :
«as Belas-Artes Eusébias, no mosaico do Rossio».
Já nos olhos, mais escuros, de Cesário estão
«de cócoras, em linha, os calceteiros».

Estas portas, ainda assim, abrem por dentro ?
Um pátio, gelosias, pequeno lampiões.
Como se fosse uma passagem secreta.
E de repente um frigorífico, um bem essencial
para operações de arrefecimento.

Pois, provas. É sempre esse o problema.
Tendes razão e já se faz tarde. Está na hora
de sairmos desta cápsula. Adeus, senhor ilusionista.
Foi um prazer conhecê-lo. Estes são os meus
segredos. Toda a gente tem os seus.

As pedras da calçada do Rossio tornam-se no motivo que anima tanto a passagem secreta pela História como também o percurso intertextual. Na segunda parte, Vítor Nogueira adopta uma tonalidade mais sarcástica, sem no entanto embarcar numa dialéctica da desmistificação : «Foi bem. Cá seria sempre o Zé Calceteiro,/ a beber minis na Tendinha do Rossio.». Pois, não se trata de rupturas antes o apropriar de um espaço partilhado com a modernidade num desalento urbano bem contemporâneo : «Presos às raízes do passado, a nossa curiosidade/ é omnívora : queremos saber tudo, conhecer/ a composição da superfície, encontrar enfim/ um ponto de equilíbrio. Mas a vida real// voltou, vem agora atrás de nós». Deste modo, a curiosidade, o querer saber, o conhecer potenciam um experiência da deambulação, do querer desvendar o mundo, no rol dos grandes poetas urbanos como Baudelaire, Maiakovski, Alexandre O’Neill e o já citado Cesário Verde. Vítor Nogueira enfileira-se, então, nesta filiação tornando-se num dos Filhos que impediram a morte de seus pais. Logo, a figura do sujeito poético instala-se na realidade das ruas da Baixa lisboeta, indo do mar largo até à rua da Vítoria, passando pelo hotel Altis, os cafés Nicola e Gelo, encostando-se ao Teatro Nacional, viajando no elevador de Santa Justa, atravessando o Terreiro do Paço, olhando para a placa que assinala o prédio onde nascera o Eça de Queiroz, seguindo até à Praça da Figueira, terminando a sua digressão na Rua do Amparo.

Esta é uma poesia da percepção do espaço e das vivências do tempo. Vítor Nogueira soube, com este livro, trazer para o campo da poesia a experiência da multidão, permitindo assim a reabilitação da figura do flâneur e do seu consequente movimento errático. Aliás, a escrita de Mar Largo assenta precisamente na figura deste flâneur que, assumindo a tradição moderna, conduz a novas formas de percepção das quais se destaca uma valorização do olhar e do ouvir. Trata-se dum livro muitíssimo bem construído cuja vertente narrativa se in-escreve à partir do motivo da calçada portuguesa que, por sua vez, torna legível uma relação entre a experiência visual ou sonora e a memória, em muito similar ao Pina.

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