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Uma aventura no Porto
15 janvier 2009

EM BREVE...

POESIA COMPLETA DE HERBERTO HELDER
EM BREVE NAS LIVRARIAS



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O Pesado Poema do Mundo

Herberto Helder voltou. E com ele o cortejo do desassossego. A Faca Não Corta o Fogo interrompe um silêncio de quatro anos, mas desta feita nem índice há. Os mais atentos darão conta, no fim de cada núcleo, de títulos entre parêntesis. E é tudo. Se em 2004, com Ou o Poema Contínuo, nos podíamos apoiar na cronologia, os poemas a eito desde A Colher na Boca, agora nem isso. A súmula é uma sucessão de rasuras, e o novo, ou inédita, uma moratória de poemas a haver.
Em português de Portugal, e não estou a descobrir a roda, o moderno vai de 1846 a 1958, que o mesmo é dizer do Garrett das Viagens na Minha Terra ao Herberto de O Amor em Visita. Muda aí o paradigma: «Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra / e seu arbusto de sangue. Com ela / encantarei a noite. / Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.» Irremediavelmente contaminados, quem chega depois parece surgir do nada, o que explicará o descaso da tradição num país que então começava a digerir Pessoa e dava de chofre com «a raiz da ciência desde os pés até aos olhos».
Seria interessante fazer o levantamento da recepção crítica de Herberto, que dura há coisa de 30 anos, para uma obra que se publica há 50. Por exemplo, em 1973, ainda o seu nome era citado muitíssimo de raspão num livro como A Poesia Portuguesa Hoje, de Gastão Cruz (a segunda edição da obra, de 1999, dedica-lhe quatro textos). Ora, em 1973, Herberto tinha publicados oito livros de poesia, dois de prosa  —  um deles nada menos que Os Passos em Volta, de 1963  —, e outro de versões, e também Ofício Cantante, antologia de poemas dos anos 1953-63, e ainda a primeira edição de Poesia Toda, em dois volumes, publicada justamente em 1973. Isto para dizer que o consenso tardou.
E o nomadismo com isso? Tudo. Para mais em trânsitos de Holanda e Angola, destinos fatais, repatriamento, meteorologia insular, negaças à universidade, Emissora Nacional, publicidade, bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, mais viagens, Café Gelo, operário free lance, Caixa Geral de Depósitos (quem diria!), experimentalismos vários, direcção editorial, enfim, um perfil muito, mas mesmo muito, desalinhado, por mor «da puta de [sua] vida indistinta», às avessas do estabelecido.
Não é fácil falar de Herberto, porque Herberto queima pontes, dando a ler uma suma com um pé no romantismo alemão, outro no imagismo russo, fora tradições inesperadas como a dos ameríndios. Manuel Gusmão disse outro dia que Herberto «é a sua própria tradição, em Portugal». Isso é exacto. Afinal, se Herberto fosse um poeta igual a tantos que vicejam nos departamentos de literatura, Novalis refulgiria intacto nos interstícios da voz. Mas Herberto dribla, nunca fez outra coisa senão trocar as voltas à close reading. Sabe que «a vida inteira para fundar um poema, / a pulso, / um só, arterial, com abrasadura, / que ao dizê-lo os dentes firam a língua, / que o idioma se fira na boca inábil que o diga». Sabê-lo exige um idioma assim. Lembrar, muito a propósito, o verso famoso: «Não posso escrever mais alto».
A minha geração cresceu com Herberto, repetindo versos irrepetíveis, como «Esse beijo afundou-se-me até às unhas», ou aqueloutros em que o mundo cabia num punhado de palavras: «Mulheres correndo, correndo pela noite. / O som de mulheres correndo, lembradas, correndo / como éguas abertas, como sonoras / corredoras magnólias. / Mulheres pela noite dentro levando nas patas / grandiosos lenços brancos.» Mas os que nasceram quando Cobra (1977) preenchia o vazio que, em volume original, vinha desde Vocação Animal (1971), esses para quem o estranhamento é estorvo à deriva do seu (deles) quotidiano —  daí o sucesso de Ruy Belo, mais complexo do que aparenta, naturalmente sem culpa nenhuma da apropriação indevida do que passa por teia rasa do discurso  —, olham Herberto de soslaio, desconfiados da radiação deste «abrupto termo dito último pesado poema do mundo». Receio bem que A Faca Não Corta o Fogo prolongue a querela. Eduardo Pitta.

Texto de Eduardo Pitta publicado na LER nº 74.

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