Manuel de Freitas
Supermercado
Tenho 35 anos e sei finalmente o que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com chocolate
Agros e, claro, uma garrafa de Famous
Grouse e pelo menos seis latas de Super Bock.
(…)
É um bocadinho banal, eu sei, mas é a minha
prestação diária enquanto consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de lágrimas & remorsos.
Manuel de Freitas , in Telhados de Vidro, nº10
HANTAÏ, 1992
para o
Olímpio Ferreira
Ou digamos cravo, cetim
- how beautiful -
destas horas vãs. Entre
o torpor e o excesso,
tão próximos (outra vez) da morte.
Num gesto de penumbra, avanças
- e o meu rosto passa
a ser outra coisa qualquer.
Fugaz sinónimo de beleza
em vez das punhetas do costume.
(de Büchlein für Johann Sebastian Bach, Assírio & Alvim, 2003)
Poema Sumário das tabernas de Lisboa
Rua de São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25A. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
n.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.
Praça das Flores n.º 5
(de Todos Contentes e Eu Também, Campo das Letras, 2000)
TRAVESSA DOS GATOS
à memória de Eugénio de Andrade
Para quê mais versos?
O poema está feito, cabe
inteiro nestas sílabas de pedra
onde gostei tanto de magoar os pés.
Cortem ao sol de Fevereiro
- pretos, quase brancos
e malhados – os príncipes
desta terra, os únicos.
Não te atrevas a seguí-los, dona morte.
Juros de Demora, p 30.